A comunidade quilombola Ilha de São Vicente, cercada pelo Rio Araguaia, fica localizada em Araguatins-TO, na região do Bico do Papagaio, e é habitada por mais de 40 famílias descendentes de escravizados. A comunidade enfrenta a negação de seus direitos desde a época do surgimento do quilombo, em 1888, e agora luta pela finalização do processo de regularização fundiária, sendo aguardada a titulação do território pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Entretanto, assim como ocorre na maioria dos territórios, a morosidade no processo de regularização intensifica conflitos pela terra e dificulta às famílias o acesso a políticas públicas básicas de saúde, educação e infraestrutura, comprometendo o estabelecimento de sua identidade cultural.
Para ter acesso à educação, crianças e adolescentes da comunidade saem de casa cedo, embarcam em uma lancha escolar e, ao chegar à orla do rio, em Araguatins, são obrigadas a caminhar longas distâncias a pé, sob altas temperaturas, até chegar à escola. Por segurança, alguns pais e mães precisam deixar os afazeres para acompanhar os filhos.
Na comunidade também não há ponto de atendimento de saúde. Todas as famílias do quilombo precisam se deslocar ao centro da cidade para ter acompanhamento médico, consulta de rotina ou até mesmo para tratar casos de emergência. A demora no atendimento pode agravar o diagnóstico.
História
A comunidade Quilombola Ilha de São Vicente surgiu em 1888, época que coincide com a assinatura da Lei Áurea. Seus primeiros habitantes foram oito negros, comprados em Carolina, no Maranhão, trazidos da África para o trabalho escravo no Brasil. Na época, após a abolição da escravatura, eles receberam a terra como uma doação e começaram a povoar o território. Os ex-escravizados constituíram a família Barros, que também perpassa pelos ancestrais indígenas (os Araras e os Curi Araras) e a família Noronha.
Com o passar dos anos, passaram a acontecer casamentos entre as famílias, formando os “Barros Noronha”. Ambos viviam na Ilha de São Vicente e no outro lado do rio, território que faz parte do estado do Pará. Nas terras da Ilha, as famílias trabalhavam com a criação de gado e de porcos, e no lado do Pará, mantinham as roças e a produção de farinha.
Desde sua fundação, a comunidade sempre sofreu com ataques por conta de conflitos pela terra e foi defendida pelos descendentes quilombolas, como a educadora Fátima Barros que faleceu em 2021 vítima da Covid-19. Fátima foi uma liderança quilombola e comunitária conhecida nacionalmente pela defesa das comunidades quilombolas e do cerrado e foi referência na luta social.
Após a comunidade sofrer um despejo em 2010, Fátima e demais membros do quilombouniram esforços para lutar pela regularização de seu território.
No mesmo ano, a comunidade quilombola Ilha de São Vicente recebeu, da Fundação Cultural Palmares, a certificação de autodefinição como remanescentes de quilombo. Em 2019 a comunidade recebeu, da Justiça, a posse do território, e em 2020 a comunidade foi reconhecida como quilombo pelo Governo Federal. Na época, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) publicou a portaria Nº 1.080, que “declara como terras da Comunidade Remanescente”. (Entenda abaixo a linha cronológica)
A comunidade optou por não pedir a retomada da extensão do território que fica do lado do Estado do Pará.
Entretanto, mesmo com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) e estudo antropológico elaborado por equipe multidisciplinar do INCRA e por antropólogos da UFT, publicado em 2015, a comunidade novamente sofreu tentativa de despejo por um juiz em 2016. A ação foi movida por um fazendeiro contra Salvador Batista Barros, quilombola, patriarca e líder da comunidade, falecido em 2017. Na época, Salvador tinha 80 anos e teve que ser levado da Ilha enquanto a família lutava pela suspensão da liminar.
Em 2019, a Justiça Federal julgou uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, garantindo à comunidade quilombola Ilha de São Vicente o direito à posse da terra. No processo, a 1° Vara Federal de Araguaína julgou que a terra em disputa é ocupada por descendentes de ex-escravizados, a quem a Ilha fora doada após a abolição da escravatura, sendo assim comprovado também que o reclamante era invasor do território.
O fato foi embasado pelo relatório antropológico do território. No estudo, elaborado pela antropóloga da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Rita de Cássia Domingues Lopes, é constatado que Salvador Batista Barros, seus irmãos e seus descendentes nasceram e foram criados na Ilha, e que seus ancestrais são os ex-escravizados Julião Barros e Serafina Benedita Batista, primeiros habitantes do quilombo, que receberam a Ilha como pagamento de uma dívida de Vicente Bernardino, após a abolição da escravidão em 1888.
Invasões
A Ilha de São Vicente tem uma grande extensão de terra e por ser caracterizada como terra da União, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão responsável pela gestão de bens públicos da União, passou a participar diretamente do processo de regularização fundiária da comunidade, tendo publicado portaria, em 2018, destinando as terras da Ilha para a regularização do território.
Entretanto, devido à morosidade nos processos, a comunidade continua sofrendo com as invasões.
Além de fazendeiros e pessoas consideradas da “alta sociedade”, pessoas que se intitulam como “ribeirinhos” vieram para a Ilha após a ordem de despejo de 2010.
Hoje, o grupo que mora nas terras ilegalmente, contesta a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) sobre a destinação das terras à comunidade quilombola da Ilha de São Vicente, mesmo já tendo sido comprovado judicialmente que a posse pertence às famílias quilombolas e que o território está em nome da União. Com isso, também fica extremamente proibida a compra e venda de lotes dentro do território, como vem acontecendo com frequência.
Além disso, no processo de conclusão do estudo antropológico e publicação do RTID em 2015, o INCRA notificou os detentores de imóveis rurais localizados na área delimitada do território, que corresponde a 2.502 hectares, porém não apresentaram manifestações ou contestações.
Vale ressaltar que além da formação de loteamentos e compra e venda ilegal de terrenos, também tem sido praticado pelos invasores o desmatamento ilegal na Ilha, destruindo a fauna e a flora do quilombo.
Nos últimos meses, grande quantidade de árvores foram derrubadas por invasores, incluindo um estopeiro – árvore nativa centenária que era protegida pela comunidade.
Uma dívida histórica
Dando continuidade ao processo de regularização, que também sofreu parada devido às medidas de restrição de contato social impostas pela pandemia da Covid-19, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) esteve na comunidade no início de maio de 2023 e se comprometeu em resolver a situação do território quilombola.
Durante a audiência, o superintendente da SPU, Edy César Passos, informou que todas as pessoas não remanescentes de quilombo que construíram propriedades no território são consideradas invasoras e que por isso devem sair do território durante o processo de regularização.
A SPU também informou que irá entrar com ação de reintegração de posse para que as terras invadidas sejam devolvidas à comunidade quilombola.
Após concluída a ação, o Incra poderá realizar a titulação definitiva do território. A previsão é que ainda este ano o território seja titulado no nome da associação da comunidade quilombola.
A comunidade segue aguardando a conclusão do processo de regularização e deseja que seus direitos negados, por séculos, enfim sejam respeitados, possibilitando que os descendentes de seus ancestrais que foram escravizados, tenham condições para uma vida digna, com acesso a políticas públicas e a demais direitos que lhe são garantidos pela Constituição.
Matéria produzida por Geíne Medrado